A LIRA DE PINDOBAÇU

Esta lira já tem seu guardião, protetor, tocador e emissor de vibrações divinas. Reclusa, quase secreta, congrega e concilia os ideais e aspirações de toda uma juventude, ainda pura no seio desta pequena cidade circundada de verde e imersa no oceano infinito dos tempos: Pindobaçu.

Pouco se tem escrito sobre ela; portanto, mantém-se singela e não poluída pelas águas das ambições desmedidas e dos sonhos grandiosos daqueles que ainda não aprenderam sobre a beleza e força do simples.

Este jovem, entretanto, já fez soar sua lira, e esta, já foi ouvida para muito além das suas montanhas...

Revelo, pois, o nome deste alvissareiro poeta, HERONALDO RAMOS, doravante canal constante da poesia que se fez ou se fará brotar das fontes puras de seus jovens de todas as idades, uma vez que essa eterna fonte de juventude e beleza irá fortalecer e renovar os canais de comunicação dessa linda cidade; para ele, nossos votos de imaginação, inspiração, intuição e insight – constantes, para que o Amor se revele em suas múltiplas formas atingindo os corações daqueles que buscam compreender a verdade sobre si mesmos.

Tânia Belfort

DEDICATÓRIA – a todos os amantes

“...vós que me amastes pelo tímido início
de amor que vos tinha e do qual me evadia,
pois o espaço que amava em vosso rosto
em espaço cósmico se transformava.

- Enquanto aguardo diante do palco dos títeres – não,
quando me transformar inteiramente num intenso olhar...
um Anjo surgirá para refazer o equilíbrio,
como o ator que anima os títeres, Anjo e boneco:
haverá por fim espetáculo.

Congrega-se então o que, sem cessar,
nossa existência mesma desagrega.
E nasce das nossas estações
o ciclo da transformação total.

Muito acima de nós,
o Anjo brincará...”

Rainer Maria Rilke

Elegias de Duíno

terça-feira, 21 de outubro de 2008


OS PADRINHOS E AS MADRINHAS

DA LIRA DE PINDOBAÇU


FERNANDO PESSOA

CANÇÃO


“Silfos ou gnomos tocam?...

Roçam nos pinheirais

Sombras e bafos leves

De ritmos musicais.

Ondulam como em voltas

De estradas não sei onde,

Ou como alguém que entre árvores

Ora se mostra ou esconde.

Forma longínqua e incerta

Do que eu nunca terei...

Mal ouço e quase choro,

Por que choro não sei.

Tão tênue melodia

Que mal sei se ela existe

Ou se é só o crepúsculo,

Os pinhais e eu estar triste.

Mas cessa, como uma brisa,

Esquece a forma aos seus ais;

E agora não há mais música

Do que a dos pinheirais.”



AO LONGE, AO LUAR


Ao longe, ao luar,

No rio uma vela,

Serena a passar,

Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser

Tornou-se-me estranho,

E eu sonho sem ver

Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?

Que amor não se explica?

É a vela que passa

Na noite que fica.



HOJE QUE A TARDE É CALMA


Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,

E a noite chega sem que eu saiba bem,

Quero considerar-me e ver aquilo

Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo

Que fui quem foi aquilo em torno meu,

Salvo o que o vago e incógnito desejo

De ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo

Minha atenção sobre quem fui de mim,

E nada de verdade em mim albergo

Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,

Segui por dois caminhos par a par.

Fui como o mundo, parte da paisagem;

Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço

Que sou diverso no que informe estou.

No meu próprio caminho me atravesso.

Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,

Vários trazidos de outros mundos, e

No mesmo ponto espacial sensível

Que sou eu, sendo eu por estar aqui?

Serei eu, porque todo o pensamento

Podendo conceber, bem pode ser,

Um dilatado e múrmuro momento,

De tempos-seres de quem sou o viver?



CANTO XLVIII

do livro "O GUARDADOR DE REBANHOS"


Da mais alta janela da minha casa

Com um lenço branco digo adeus

Aos meus versos que partem para a humanidade.

E não estou alegre nem triste.

Esse é o destino dos versos.

Escrevi-os e devo mostrá-los a todos

Porque não posso fazer o contrário

Como a flor não pode esconder a cor,

Nem o rio esconder que corre,

Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência

E eu nem sequer sinto pena

Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?

Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.

Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.

Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.

Submeto-me e sinto-me quase alegre,

Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!

Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.

Murcha a flor e o seu pó dura sempre.

Corre o rio e entra no mar

e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.




JACQUES PRÉVERT



O TERNO E PERIGOSO ROSTO DO AMOR


O terno e perigoso

rosto do amor

me apareceu numa noite

depois de um dia muito comprido

Talvez fosse um arqueiro

com seu arco

ou ainda um músico

com sua harpa

Não me lembro mais

Nada mais sei

Tudo o que sei

é que ele me feriu

talvez com uma flecha

talvez com uma canção

Tudo o que sei

é que ele me feriu

feriu aqui no coração

e para sempre

Ardente muito ardente

ferida do amor.



O GATO E O PÁSSARO


Uma cidade escuta desolada

O canto de um pássaro ferido

É o único pássaro da cidade

E foi o único gato da cidade

Que o devorou pela metade

E o pássaro deixa de cantar

O gato deixa de ronronar

E de lamber o focinho

E a cidade prepara para o pássaro

Funerais maravilhosos

E o gato que foi convidado

Segue o caixãozinho de palha

Em que deitado está o pássaro morto

Levado por uma menina

Que não pára de chorar

Se soubesse que você ia sofrer tanto

Lhe diz o gato

Teria comido ele todinho

E depois teria te dito

Que tinha visto ele voar

Voar até o fim do mundo

Lá onde o longe é tão longe

Que de lá não se volta mais

Você teria sofrido menos

Só tristeza e saudades...

É preciso nunca fazer

as coisas pela metade.



CAFÉ DA MANHÃ


Pôs café

na xícara

Pôs leite

na xícara com café

Pôs açúcar

no café com leite

Com a colherzinha

mexeu

Bebeu o café com leite

E pôs a xícara no pires

Sem me falar

acendeu

um cigarro

Fez círculos

com a fumaça

Pôs as cinzas

no cinzeiro

Sem me falar

Sem me olhar

Levantou-se

Pôs

o chapéu na cabeça

Vestiu

a capa de chuva

porque chovia

E saiu

debaixo de chuva

sem uma palavra

Sem me olhar

Quanto a mim pus

a cabeça entre as mãos

E chorei.



PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO


Primeiro pintar uma gaiola

com a porta aberta

pintar depois

algo de lindo

algo de simples

algo de belo

algo de útil

para o pássaro

depois dependurar a tela numa árvore

num jardim

num bosque

ou numa floresta

esconder-se atrás da árvore

sem nada dizer

sem se mexer...

às vezes o pássaro chega logo

mas pode ser também que leve muitos anos

para se decidir

Não perder a esperança

esperar

esperar se preciso durante anos

a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro

nada tem a ver

com o sucesso do quadro

Quando o pássaro chegar

se chegar

guardar o mais profundo silêncio

esperar que o pássaro entre na gaiola

e quando já estiver lá dentro

fechar lentamente a porta com o pincel

depois

apagar uma a uma todas as grades

tendo o cuidado de não tocar

numa única pena do pássaro

Fazer depois o desenho da árvore

escolhendo o mais belo galho

para o pássaro

pintar também a folhagem verde

e a frescura do vento

a poeira do sol

e o barulho dos insetos pelo capim

no calor do verão

e depois esperar que o pássaro queira cantar

Se o pássaro não cantar

mau sinal

sinal de que o quadro é ruim

mas se cantar bom sinal

sinal de que pode assiná-lo

Então você arranca delicadamente

uma das penas do pássaro

e escreve seu nome num canto do quadro.




NIETZSCHE


Nietzsche pensou o mundo como uma

“grandeza indeterminada de força”,

que apresenta um número calculável de

combinações...

tudo o que já ocorreu virá a existir novamente:

o cosmos é concebido como um

curso circular de séries absolutamente idênticas,

atendendo única e exclusivamente à “vontade de potência”.

Essa concepção do universo

abole as noções de princípio e fim

e coloca o homem em meio a um

curso circular infinito. Vejamos...

“(...) Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta,

será sempre desvirada outra vez

e sempre se escoará outra vez,

- um grande minuto de tempo no intervalo,

até que todas as condições,

a partir das quais vieste a ser,

se reúnam outra vez no curso circular do mundo.

E então encontrarás cada dor e cada prazer

e cada amigo e inimigo

e cada esperança e cada erro

e cada folha de grama

e cada raio de sol outra vez,

a inteira conexão de todas as coisas.

Esse anel, em que és um grão,

resplandece sempre outra vez.

E em cada anel da existência humana

- em geral há sempre uma hora -

em que primeiro para um,

depois para muitos,

depois para todos,

emerge o mais poderoso dos pensamentos,

o pensamento do eterno retorno de todas as coisas:

- é cada vez,

para a humanidade,

a hora do "meio dia".

(O Eterno Retorno...)


MANUEL BANDEIRA


O RIO

Ser como o rio que deflui

Silencioso dentro da noite

Não temer as trevas da noite.

Se há estrelas no céu, refleti-las.

E se os céus se pejam de nuvens,

Como o rio as nuvens são água

Refleti-las também sem mágoa

Nas profundidades tranqüilas.



ENTRE O EFÊMERO E O ETERNO

Belo Belo Belo

Tenho tudo quanto quero

Tenho o fogo das constelações

Extintas há milênios.

E o risco brevíssimo – que foi?

passou!

De tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se

E eu guardo

As mais puras lágrimas da aurora.

O dia vêm,

E dia adentro

Continuo a possuir

O segredo grande da noite.

Belo Belo Belo

tenho tudo quanto quero

Não quero o êxtase nem os tormentos

Não quero o que a terra dá só com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:

Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar

Não quero ser amado

Não quero combater,

Não quero ser soldado.

Quero a delícia de poder sentir

As coisas mais simples.



EMBALO

no balanço das águas

ao trépido pulsar...da máquina

embalar

as persistentes mágoas

das peremptas feridas...

beber o céu nos ventos

sabendo a sonolentos

sais e iodados relentos.

anseios de insofridas

esperas e esperanças

diluem-se nas brumas

como na vaga e espuma

- flores de espumas mansas –

que a um lado e outro abotoa

da cortadora proa.

azuis de águas e céus...

sou nada, e entanto agora

eis-me centro finito

do círculo infinito

do mar e céus afora.

estou

onde está Deus.